Boeing 737 MAX: o que deu errado e o que foi feito para garantir o retorno dos voos com segurança
Boeing 737 MAX: o que deu errado e o que foi feito para garantir o retorno dos voos com segurança
O Boeing 737 MAX ficou vários meses impedido de voar no mundo inteiro após dois acidentes que vitimaram 346 pessoas. Foram encontrados problemas que afetaram a imagem da fabricante e do FAA (Federal Aviation Administration) – órgão regulador da aviação nos Estados Unidos – num imbroglio sem precedentes. O prejuízo da Boeing e de dezenas de empresas aéreas superou a marca R$ 150 bilhões. Mas o que deu errado com esse projeto? O que foi feito para corrigir as falhas encontradas? É seguro voar nesse avião agora que os voos foram liberados no Brasil, nos Estados Unidos e em outros países? Confira essas e outras respostas nesse post especial!
O surgimento do Boeing 737 MAX
A linha MAX é a quarta geração da família Boeing 737, a mais vendida na história de aviação. É o sucessor dos Boeing 737NG (Next Generation), que foram popularizados no mundo inteiro e, aqui no Brasil, utilizados pela GOL desde o início de sua operação.
O projeto do 737 Max começou em 2011, com foco em criar aeronaves com desempenho operacional superior. Consome até 20% menos combustível do que a geração anterior, com menor custo de manutenção. O primeiro voo foi realizado em 2016, mas só em 2017 foram iniciados os voos com passageiros.
Quatro versões foram comercializadas, o 737 MAX 7, MAX 8, MAX 9 e MAX 10, que podem transportar até 230 passageiros. Foi uma resposta da Boeing ao projeto NEO (New Engine Option) da Airbus (o A320neo é utilizado no Brasil pela Azul e pela Latam). O modelo da concorrente foi lançado com motores LEAP de última geração, maiores e bem mais eficientes que os antigos modelos CFM.
O MAX foi um sucesso comercial. Foram mais de mil encomendas, com destaque para companhias aéreas chinesas, norte-americanas, e para a brasileira GOL, que encomendou cerca de 130 aeronaves. O preço de tabela de cada avião gira em torno de US$ 120 milhões.
O que há de diferente no projeto do Boeing 737 MAX
O projeto do Boeing 737 é da década de 60. É uma aeronave mais baixa, com asas e fuselagem bem mais próximos do solo que os modelos da família A320 da Airbus, projetados nos anos 80.
Com o lançamento da família NEO pela Airbus, a Boeing tinha duas opções. Criar um modelo de aeronave totalmente novo, o que demandaria alguns anos, ou adaptar os inovadores motores LEAP ao projeto já existente do Boeing 737, o que permitiria lançá-lo muito mais rápido.
A empresa decidiu adequar seu mais bem sucedido modelo de aeronave. O grande desafio era como encaixar um motor muito maior sob as asas de uma aeronave baixa como o 737. Os engenheiros da Boeing conseguiram! E o projeto ganhou o sufixo MAX.
Para que os novos motores ficassem na altura mínima necessária em relação ao solo, praticamente a mesma que na geração anterior, a Boeing os projetou mais à frente. Eles cobrem parte da borda das asas, como é possível ver na imagem a seguir.
Nos primeiros testes os engenheiros perceberam que esse novo posicionamento dos motores poderia desestabilizar a aeronave quando ela estivesse num ângulo de subida, ou fazendo uma curva ascendente (os chamados “ângulos de ataque”). Em níveis críticos de inclinação a aerodinâmica poderia “empurrar o nariz do avião” para cima, com risco de perda de sustentação (“stoll“).
A Boeing entendeu que esse problema seria totalmente resolvido com a implantação de um software, um sistema chamado de MCAS (Maneuvering Characteristics Augmentation System) – Sistema de Aumento de Características de Manobra. Esse sistema que entraria automaticamente em ação toda a vez que houvesse um risco de desestabilização, corrigindo eventuais comandos dos pilotos que colocassem em risco a sustentação da aeronave. Detalhe importante: esse sistema foi programado para entrar em funcionamento somente se o piloto automático não estiver ativado, os flaps estiverem recolhidos e os sensores indicarem um ângulo de ataque inseguro.
Comparativo do Boeing 737 MAX 8 com o Boeing 737-800NG
O sistema foi desenvolvido e o avião lançado!
O primeiro acidente: o Boeing 737 MAX da Lion Air
No dia 29 de outubro de 2018, um Boeing 737 MAX8 da Lion Air, com dois meses de uso, caiu minutos após decolar do aeroporto de Jacarta (Indonésia), deixando 189 mortos.
As investigações apontaram que nos três dias anteriores ao desastre o sistema de navegação de dados de ar da aeronave (ADIRU) estaria indicando dados inválidos. Após queixas dos pilotos sobre anomalias nas informações de velocidade e altitude, a manutenção teria reiniciado o sistema em duas ocasiões diferentes, limpado conectores, realizando testes, e liberando o avião para voo. No dia 27, em Denpasar, depois de novos problemas, um dos sensores foi trocado.
Na operação seguinte, um dia antes do acidente, o comandante recebeu dois alertas durante o voo. O primeiro de discrepância de velocidade (IAS disagree). O segundo de perda de sustentação iminente (stick shaker), onde o manche da aeronave vibra repetidamente, alertando sobre o ângulo de inclinação ou a velocidade do avião. No entanto, apenas os instrumentos do comandante indicavam problemas. Os outros dois monitores, incluindo o do copiloto, apontavam normalidade. O comandante decidiu então passar o controle do avião para o copiloto, que puxou o manche fazendo com que o ângulo de inclinação aumentasse. Ao mesmo tempo, o novo sistema de estabilização MCAS, atuava para corrigir o ângulo de ataque, “empurrando o nariz da aeronave para baixo”. Foi então que o comandante desligou o sistema, como era orientado no manual da aeronave.
Ao invés de pousar no aeroporto mais próximo, os pilotos fizeram o voo com o sistema desativado até o destino final, com o manche do comando da aeronave vibrando sem parar. O relatório indicou que tanto a Boeing quanto a companhia aérea não tinham um procedimento claro orientando a tripulação a pousar imediatamente nesses casos…
Mesmo após o terceiro incidente, a equipe da Lion Air não retirou a aeronave de circulação. O relatório de manutenção registrou, segundo a investigação, que foi feita apenas uma drenagem no sistema de dados de ar e uma limpeza no conector do computador de sensibilidade artificial do profundor de cauda, liberando novamente o avião para o que seria seu último e trágico voo.
Momentos antes do desastre, os mesmos problemas relatados nos dias anteriores voltaram a ocorrer, mas sem que os pilotos tivessem conhecimento das ocorrências prévias ou de como as tripulações haviam lidado com as falhas sistêmicas. Incomodado com o erro do painel e com os alertas sonoro e físico (a vibração provocada pelo stick shaker), o piloto pediu informações para torre de comando sobre qual era a velocidade e a altitude, tentando identificar quais seriam os dados corretos.
Ao contrário da tripulação do voo anterior, ele não desligou o sistema de estabilização. Dessa forma, o sistema empurrou o “nariz do avião” para baixo por mais de 20 vezes, de acordo com os registros da caixa preta, enquanto os pilotos forçavam novamente o ângulo de subida. Em determinado momento, os flaps foram baixados e o MCAS parou de operar (lembrando, ele só é acionado com os flaps ligados) e o avião ficou estabilizado. Porém, os pilotos voltaram a acionar os flaps, o que ativou novamente o MCAS. Isso provocou uma perda de sustentação crítica, levando ao acidente fatal.
Após o acidente, a Boeing soltou uma diretiva de emergência para as companhias aéreas e para os pilotos. Ela orientava quanto aos problemas que poderiam ocorrer numa situação de um desacordo entre os sensores de ângulo de ataque do avião. A principal orientação era cortar o sistema MCAS após estabilizar manualmente o avião, mantendo desligado durante o resto do voo. Uma tarefa trabalhosa para os pilotos, especialmente em momentos críticos de tensão.
O relatório final do acidente foi divulgado recentemente. Concluiu que os reguladores não realizaram uma avaliação adequada do MCAS e que nenhuma outra agência reguladora identificou o problema no sistema, projetado para confiar em um único sensor. Isso deixava a aeronave vulnerável a eventuais falhas de leitura.
De acordo com os investigadores, o acidente foi ocasionado por uma sucessão de falhas. O alerta dos sensores de ângulo de ataque não foi devidamente habilitado no MAX, não indicando para as equipes de manutenção e para a tripulação que um dos sensores estava descalibrado. Os problemas prévios no sensor não foram devidamente documentados pela companhia aérea. Tanto a manutenção em Jacarta, como a tripulação do acidente, não tiveram acesso a informações importantes que poderiam indicar as ações mais apropriadas para aquele tipo de falha. Além disso, o sensor trocado no dia anterior ao acidente estava descalibrado, não tendo sido devidamente testado pela manutenção.
As autoridades concluíram ainda que não houve um gerenciamento adequado da carga de trabalho entre os dois pilotos, após os alertas e as ativações repetidas do MCAS. O desempenho foi considerado inadequado. O mais grave é que isso já havia sido identificado previamente durante os treinamentos, se repetindo no dia do acidente. O copiloto não tinha um treinamento adequado para controlar manualmente o avião, com dificuldades identificadas em testes anteriores, de conhecimento da Lion Air. No entanto, a empresa se limitou a indicar novos treinamentos para o copiloto, que permaneceu voando.
Por fim, o relatório afirma que o projeto do avião poderia evitar esse tipo de acidente, eliminando interferências não desejadas no controle da aeronave. De acordo com os investigadores, a Boeing, sem a supervisão adequada dos órgãos reguladores, não soube prever os riscos no design do software da cabine de pilotagem do avião. Foram feitas várias recomendações para a fabricante e para os reguladores. O relatório completo você pode ver aqui (somente em inglês).
O segundo acidente: o Boeing 737 MAX da Ethiopian Airlines
Enquanto as investigações do desastre com o avião da Lion Air avançavam, no dia 10 de março de 2019, uma nova tragédia. Em circunstâncias aparentemente semelhantes, outro Boeing 737 MAX, dessa vez no voo 302 da Ethiopian Airlines, caiu apenas seis minutos após a decolagem, próximo à cidade de Bishoftu. Todas as 157 pessoas a bordo morreram.
As circunstâncias similares e a incerteza em relação às causas exatas dos dois acidentes geraram um enorme medo e pressão sobre as companhias aéreas, agências reguladoras e, claro, sobre a Boeing. Afinal, a aviação não admite coincidências… Isso levou ao impedimento de voo de todos os Boeing 737 MAX no mundo por tempo indeterminado.
As investigações indicaram que houve novamente uma falha nos indicadores de velocidade e altura do avião. Não há convicção se o problema foi causado por um mal funcionamento dos sensores, ou no sistema que interpretava o dados. Mas Dennis Muilenburg, CEO da Boeing, reconheceu que a empresa teve culpa pelos dois desastres: “É aparente que em ambos os voos o sistema MCAS foi ativado em resposta a informação errada do sensor de ângulo de ataque. A história da nossa indústria mostra que maioria dos acidentes são causados por uma série de eventos. É novamente o caso, e sabemos que podemos quebrar esta série de eventos nos dois acidentes. Como pilotos disseram para nós, a ativação errônea do MCAS pode adicionar mais carga de trabalho, que já é alta. É nossa responsabilidade para eliminar esse risco. Nós temos a solução e iremos fazer.”
Os problemas do Boeing 737 MAX
A primeira questão que chamou a atenção dos especialistas e investigadores é por que a Boeing implementou um sistema de manobra que interfere no controle de voo usando dados válidos de apenas um sensor? Isso poderia ter evitado os dois acidentes, já que em ambos os casos a divergência nos dados dos sensores deu início ao problema de desestabilização da aeronave.
Outro questionamento feito é sobre o manual do avião, que não tinha informações claras para os pilotos sobre o funcionamento do MCAS. Lembrando que esse sistema que não existe em nenhum outro modelo de aeronave no mundo. Além disso, o manual indicava que o alcance máximo de atuação do estabilizador permitiria o controle do avião através dos profundores (a parte de trás da asa que se move com o manche o piloto), o que de fato não ocorreu no segundo acidente.
Por fim, as autoridades fizeram questionamentos sobre o treinamento dado aos pilotos para a operação do MAX e o funcionamento do MCAS, especialmente pela falta de simulação de situações semelhantes às vividas pelas tripulações que tiveram problemas no controle do avião.
O que foi feito para evitar novos acidentes com o Boeing 737 MAX?
Uma comissão de agências de aviação civil, entre elas a Anac (Brasil) e o FAA (Estados Unidos), ficou responsável por determinar as correções e melhorias necessárias no projeto, bem como por testar as soluções propostas pela fabricante, num trabalho que levou cerca de dois anos. Entre as mudanças, destacam-se:
Update do software do MCAS
A Boeing incluiu 3 camadas adicionais de proteção no sistema do MCAS, que passa a comparar dados de dois sensores de ângulo de ataque e não mais apenas um. Se houver uma diferença relevante entre eles, o MCAS não vai mais intervir e os pilotos serão alertados. Isso deve garantir que o sistema não se sobreponha a outros sistemas críticos do avião, que dificultem intervenções por parte dos pilotos. Além disso, a fabricante ressaltou que realizou atualizações adicionais no sistema de controle de voo para garantir mais redundância e segurança em caso de falhas.
Treinamento
Foi desenvolvido um novo treinamento para os pilotos em conjunto com os órgãos reguladores de diferentes países. Os pilotos passaram a receber orientações e feedbacks relacionados a operação do MAX. Além disso, há alguns meses estão sendo realizadas seções de simulação com o software atualizado, onde já participaram 90% dos operadores do Boeing 737 MAX. Antes de voltar a pilotar o MAX, as tripulações precisarão passar por cursos e por testes em simuladores.
Testes
A Boeing realizou mais de 4.400 horas de testes, incluindo mais de 1.350 voos. Boa parte acompanhados pelos órgãos reguladores. O objetivo era assegurar que a atualização de fato mitigou os riscos de que um problema semelhante aos ocorridos volte a acontecer. E também prevenir novas falhas.
Outras medidas foram tomadas, mas essas foram as principais.
Quando o Boeing 737 MAX vai voltar a voar?
A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) autorizou no dia 25 de novembro de 2020 a operação das aeronaves modelo Boeing 737-8 MAX no Brasil. Com um trabalho de aproximadamente dois anos, a validação das modificações do projeto foi feita após a aprovação da autoridade certificadora, a Agência Federal de Aviação dos Estados Unidos (FFA, da sigla em inglês).
A GOL anunciou o retorno dos voos comerciais com o Boeing 737 MAX a partir de 9 de dezembro de 2020. A empresa já realizou voos com a imprensa, funcionários e convidados e será a primeira companhia aérea do mundo a retomar os voos com este modelo.
Será seguro voltar a voar no Boeing 737 MAX?
Tudo indica que sim. Depois dos acidentes, o Boeing 737 MAX deverá ser uma das aeronaves mais testadas e analisadas na história da aviação mundial. Ainda que a atuação dos órgãos reguladores na certificação inicial do MAX possa ser questionada, depois dos acidentes as agências adotaram máxima precaução. Exigiram uma infinidade de testes e requisitos de segurança para reabilitar a licença de voo do MAX.
Vale destacar que o trabalho realizado pela Boeing não exime as companhias aéreas, agências, empresas de manutenção, fornecedores e profissionais de aviação de aprender e agir para que desastres como esses nunca mais voltem a ocorrer.
Resta à Boeing e às companhias aéreas convencer os passageiros de que é seguro voar no Boeing 737 MAX. Depois de estudar muito sobre o assunto, eu posso afirmar: voltarei a voar no MAX (eu fiz dois voos no MAX da GOL antes dos acidentes). E você, o que acha disso tudo? Voaria no 737 MAX? Comente e participe!
Esse post foi escrito originalmente em novembro de 2019 e atualizado em 8 de dezembro de 2020, após a liberação do Boeing 737 MAX pela Anac.
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