Roteiro no Nepal: 13 dias de trilha no país do Everest
Roteiro no Nepal: 13 dias de trilha no país do Everest
O Nepal é um fascinante destino do continente asiático, lar de algumas das montanhas mais altas do mundo. Escalar o Everest é o sonho de muita gente, alpinistas ou não. Nosso leitor Matheus Hobold Sovernigo encarou uma excursão solitária pelas montanhas da cordilheira do Himalaia e compartilhou tudo com a gente, num relato detalhado. Confira!
Salve, viajantes! Aqui quem vos escreve é Matheus. Assim como vocês, sou apaixonado por viagens. Desde 2016, quando deixei meu emprego de biólogo na Petrobras, viajo em tempo integral e mantenho o blog Rediscovering the World. E para essa aventura que contarei a seguir, publiquei o livro Trekking Extremo no Himalaia: Acampamento Base do Everest + Gokyo, onde conto tudo de forma detalhada.
Essa é a história real de uma excursão solitária, planejada e executada por mim num dos principais destinos de ecoturismo do planeta, as montanhas da cordilheira do Himalaia – mas sem a ascensão ao cume do Everest. Por quê? Principalmente pela questão financeira (+100 mil reais), tempo de duração (2 meses), necessidade de estar em equipe, experiência em técnicas verticais e nas mesmas condições ambientais, além da própria segurança.
Passei um bom tempo sonhando com essa expedição, que se tornou possível graças a uma promoção de passagens para a Índia, anunciada pelo Melhores Destinos. Paguei 734 dólares no total, com destino a Mumbai. Assim, fiquei cerca de um mês rodando pela região, até que em 14/04/2019, após um percalço causado pela falência da companhia aérea que me levaria, desembarquei na capital nepalesa.
Preenchi o formulário eletrônico de entrada, paguei o visto para um mês (40 dólares), troquei dinheiro na cotação de 1 dólar pra 107 rúpias nepalesas e deixei o aeroporto a pé sob leve chuva.
Pernoitei no hotel Sunaulo Inn, num quarto meia-boca por 1200 rúpias. Jantei no próprio lugar, escolhendo um “biryani” de ovo por 280 rúpias.
0º dia – Katmandu
Fui empolgado ao aeroporto, só para descobrir que meu voo não sairia tão cedo. Cheguei às 9h e esperei… esperei… esperei, até que às 17h, finalmente, todos os voos para Lukla foram cancelados pelo tempo adverso e por um acidente fatal no dia anterior! Um dia inteiro perdido mofando no saguão…
Leia também: Dicas para escolher a mala ideal para a sua viagem de avião
Pelo menos no final do dia consegui conhecer o complexo do templo hinduísta de Pashupatinath (1000 rúpias). A arquitetura é interessante, com várias estupas e teto dourado. Ao longo de um rio, aqui ocorrem rituais como em Varanasi, na Índia. Tive sorte de presenciar uma das cremações, que começam com a cobertura do defunto com flores e o som de uma banda ao vivo. Em seguida, põe-se madeira e material inflamável por cima e se acende uma fogueira, que transforma o corpo em cinzas, terminando no rio. Meio macabro.
Jantei um “chowmein” de frango, que é um macarrão chinês (250 rúpias), e repousei no mesmo hotel sujinho da noite anterior.
1º dia – De Lukla a Monjo
Acordei pensando que a aeronave não partiria de novo, mas depois de 3 horas de tráfego aéreo (pra desafogar os atrasos dos dias anteriores), nos enviaram para o aviãozinho que havia recém-pousado. E pensar que eu quase troquei o voo por um caro frete de helicóptero, como alguns dos turistas fizeram, depois de 3 dias de espera…
Logo estávamos no ar, chacoalhando entre montanhas e terraços agrícolas. Pousamos uns 45 minutos depois, na pista minúscula e assustadora do aeroporto de Lukla, um dos mais perigosos do mundo.
Comecei a caminhada às 13:40h pela cidade de Lukla a 2.900 metros de altitude, onde se pode obter itens essenciais, como o dinheiro, que consegui sacar.
Logo precisei pagar as 2 mil rúpias pra entrar no parque rural de Khumbu, primeira etapa da trilha para o acampamento base do Everest. No começo, há muitos vilarejos, muitos turistas, carregadores humanos (Sherpas) e animais (cavalos, burros e iaques). E descidas, ao contrário do que se imagina.
Essa região segue o budismo tibetano, então há muitos monumentos, como estupas, rochas com mantras e rodas “mani”, além de alguns monastérios.
Parei após duas horas, na metade do caminho que faria no dia, para pegar água de uma bica e descansar (por uns 10 minutos). Uma parte eu tomei com meu filtro portátil e outra usei para limpar o suor. Depois, foi só subida e descida.
Algumas pontes pênseis cruzam um rio glacial turquesa lindo. Uma dessas fica em Phakding, vilarejo badalado onde repousaram os demais trilheiros que largaram comigo.
Eu prossegui até Monjo, avistando antes a ave símbolo faisão-do-Nepal e uma cerejeira florida. Cheguei ao final da tarde, 4 horas depois do começo, e um tanto cansado.
Passei essa noite em um quarto com banheiro, chuveiro quente e wi-fi por 500 rúpias, na Monjo Guesthouse. Essa e a maioria das hospedagens são baratas assim, mas você precisa ter suas refeições no próprio lugar. Estava vazio, então só encontrei um senhor francês para conversar, enquanto esperava a janta vegetariana de “dal bhat”, o prato mais típico nepalês, que consiste em arroz, lentilha, curry de vegetais aleatórios e um salgado. É muito bem servido, e pode repetir o quanto quiser (500 rúpias).
Na digestão, continuei na sala comum com calefação, ouvindo músicas nepalesas e tomando “raksi”, uma bebida alcoólica caseira de arroz e maçã, que o pessoal da hospedaria me ofereceu.
2º dia – De Monjo a Namche Bazaar
Dormi bem. Comi uma barra de proteína e parti, passando pela entrada do Parque Nacional Sagarmatha. Mais 3 mil rúpias de pagamento. Depois da breve descida em Jorsalle, cercada por florestas de coníferas e cachoeiras, começa uma subida excessiva até Namche Bazaar. Não há vilarejo algum no caminho.
Quase 3 horas mais tarde, depois de passar bastante gente com língua de fora, cheguei cansado da ascensão de 600 metros. Ao menos o tempo, até então, estava bom. Eu podia usar roupa de corrida.
Namche Bazaar é a última cidade da trilha. No seu semicírculo de construções cravadas na montanha há uma infinidade de hospedagens, restaurantes e lojas, onde se encontra de tudo para comprar, a certo preço.
Entrei em 3 pousadas até encontrar uma que não estivesse cheia ou que cobrasse até para respirar. Fiquei na Pumori Guesthouse, por 500 rúpias, com banheiro compartilhado, recarga de aparelhos gratuita, bem como a internet. Só o banho é cobrado, mas nesse dia tomei na pia mesmo. Sobre o quarto, é como o padrão da rota: duas camas com colchão, travesseiro e cobertor, janela com cortina, e nada mais.
Almocei ali uma pizza broto de cogumelo (550 rúpias) e saí pra reconhecer a área. Só foi eu botar o pé pra fora que começou a chover e não parou mais. Até rolou um fenômeno climático incomum, uma precipitação monstruosa de granizo com neve!
Nesse período, fiquei no bar The Hungry Yak, onde são transmitidos documentários sobre a montanha. Assisti a impressionante primeira ascensão do Everest, no filme “The Wildest Dream”. Enquanto isso, bebi uma Nepal Ice, cerveja forte nepalesa, mas que chega aqui num preço salgado: 600 rúpias pelo latão de meio litro. Daqui pra frente, nada de bebida alcoólica, já que a combinação álcool mais altitude é potencialmente letal.
Passei por quase todas ruas, pelo Monastério Gomba, e, já escuro, voltei pra hospedagem para jantar um bife de iaque (750 com acompanhamentos), gostoso mas meio fibroso.
Fui dormir sob temperatura negativa, o que se repetiria até o retorno a Namche. Uma bela vista da janela!
3º dia – Namche Bazaar
Apesar da diferença de altitude considerável, não tive nenhum sintoma do mal da montanha. Comi um omelete com pão tibetano (sem graça) e parti pra rua, para aproveitar o lindo dia ensolarado que fazia. Para melhorar a aclimatação, subi a íngreme rota que leva ao mirante do Monte Everest, mais de 400 metros acima de Namche. Lá em cima, coincidentemente, encontrei um grupo de trilheiros de Floripa, a minha cidade. Eles estavam sendo guiados por nada menos que Waldemar Niclevicz, um dos maiores montanhistas brasileiros!
Fiquei um tempo apreciando a vista do vale de Khumbu, de onde eu vim e para onde irei. Também estavam visíveis alguns dos picos mais elevados, como Ama Dablam e Lhotse. Infelizmente, o Everest estava coberto por nuvens constantes. A temperatura não estava tão baixa, mas o vento estava de matar, então tive que descer.
Em sequência, visitei o Sherpa Cultural Museum & Mount Everest Documentation Center (250 rúpias). É um modelo de residência Sherpa com seus utensílios típicos. Também há uma galeria com fotos, equipamentos e jornais a respeito das expedições ao Everest e sobre o povo das montanhas. Almocei lá mesmo “dal bhat” (600 rúpias).
A seguir, conheci o gratuito centro de visitantes do Parque Nacional Sagarmatha, onde fica essa trilha que estou seguindo. No centro há diversas informações a respeito do meio ambiente do parque.
No final da tarde, fui ao Everest Burger & Steakhouse para assistir outro filme, dessa vez “Everest”. Também aproveitei pra provar outro prato típico, o “thukpa”, que é uma sopa de macarrão com vegetais (450 rúpias).
Jantei “momos” (bolinhos de massa fritos ou cozidos com recheio de vegetais ou carne em formato de meia-lua) em minha acomodação, agora cheia de chineses. Tomei um banho quente (400 rúpias), carreguei meus eletrônicos e dormi.
4º dia – De Namche Bazaar a Tengboche
Me livrei de 1 kg de roupa que não usaria adiante, deixando na hospedagem para pegar na volta. Às 9:30 comecei a leve subida e o contorno plano do vale de Khumbu, com vista pro Everest, Lhotse e picos vizinhos.
Até aí tudo bem, mas quando o caminho desceu num bosque até a altura do rio no povoado de Phunki Thanga, começou uma subida chata de 550 metros em 2,4 km de ziguezague até Tengboche. Abocanhei uma barra de proteína e mandei ver.
No final da subida dá para ver uma morena, que são os detritos deixados por uma geleira que retrocedeu pelo aquecimento global. Já no topo, fica o pequeno povoado, centrado em um monastério importante e interessante, que visitei.
Lá reencontrei o grupo de Floripa, e troquei umas ideias com o Waldemar Niclevicz, um cara bem simpático e inspirador.
Passei por 3 hospedagens até achar uma boa opção, pois a mais popular estava lotada, a que conta com uma padaria queria cobrar 1000 rúpias, mas a Tashi Delek cobrou 500 e até que era bacana.
Para a internet, eu comprei um tal de Everest Link (2500 rúpias), que lhe dá direito a 10 GB em todas as hospedagens do caminho – e daqui pra frente o sinal do celular não pega.
Dei um rolê pra passar o dia durante uma leve nevasca, vendo Sherpas jogar vôlei. No final da tarde, quando iria jantar em minha acomodação, encontrei um trio de brasileiros (Danniel, Samir e Felipe) descendo a montanha. Passei o resto do dia conversando com eles.
5º dia – De Tengboche a Dingboche
Tomei o café junto, e logo nos despedimos, seguindo para lados diferentes. Às 9 e meia, desci um pouco dos 3860 metros até os povoados seguintes, ao redor do rio glacial Imja Khola.
Fazia um baita frio e, às vezes, o vento castigava muito. Botei um pano na cara para amenizar, mas os sinais de ressecamento, como lábios rachados, já estavam presentes.
Ao passar Pangboche, que possui o monastério mais antigo da região, comi uma barra de proteína e recarreguei de água em Shomare, o vilarejo onde a maioria dos grupos almoçava. Com a diminuição de oxigênio disponível, meu ritmo de caminhada também diminuiu. Outra coisa que também diminuiu bem foi a quantidade de árvores. Ao passar dos 4 mil metros de altitude, só restaram arbustos. Passei por alguns campos só com plantas herbáceas e arbustivas até a bifurcação Pheriche-Dingboche, bem em frente aos restos de rochas brancas de uma geleira não mais visível.
Após um esforço final de subida, cheguei 3 horas e 45 minutos depois na entrada de Dingboche, a mais de 4300 metros de elevação. Esse povoado é maior do que eu esperava.
De novo, minha hospedagem pretendida estava lotada, então acabei ficando com a Tashi Delek. Só que ao contrário desse hotel no vilarejo anterior, aqui não havia nem vaso sanitário… Paguei 500 mangos num quartinho duplo. Ainda bem que era duplo, pois precisei dos dois colchões, cobertores e travesseiros.
Escolhi um restaurante aleatório para almoçar, e acabei me dando bem, pois os preços do Himalayan Culture Home Lodge, também hotel, são comparáveis com os de Namche Bazaar, um quilômetro abaixo em altitude.
Tomei um chá de limão com gengibre e mel, mistura boa pra essa atividade, e comi “momos” vegetarianos, por 610 no total. Posteriormente, caminhei por Dingboche, só pra ver os campos marrons de plantação serem adubados com fezes.
Tomei um banho quente no Tashi Delek (500 rúpias) e fiquei relaxando, já que a rua estava fria, com uma neblina que impedia a visão de qualquer montanha, além do cheiro da bosta usada na calefação dos interiores já estar forte.
Ao sol se pôr, jantei em meu hotel o clássico “dal bhat”. Por fim fiquei debaixo das cobertas lendo.
6º dia – Dingboche e Nangkartshang
A noite foi bem gelada. Depois do café da manhã de pão, ovo e chá, usei meu dia de folga/aclimatação para subir o primeiro pico da viagem, o mais alto da minha vida até então. Sobre Dingboche, fica o árido Nangkartshang, com 5.083 metros.
Saí às 9 e meia como usual. O tempo estava bom, com algumas nuvens, mas não se via o cume por causa de uma névoa. A parte inicial é uma estupa, seguida de um mirante, numa altitude ainda não tão elevada. Depois, a inclinação fica severa. Entre rochas, poucas plantas miúdas, musgos e líquens. O vento aumentou a força, mas não incomodou tanto porque batia nas costas protegidas.
Mais além, a fadiga muscular começou a bater, mas não pior que a respiração, já que o oxigênio estava bastante escasso. Conforme o gelo surgia no caminho, eu ia quase cambaleando para chegar logo ao topo.
Duas horas e quinze minutos depois, finalmente conquistei o cume! Só que meio atordoado pela falta de ar, acabei atirando minha GoPro ladeira abaixo! Ela bateu numa pedra e foi parar num banco de gelo em outro nível. E agora? Perder todo registro da viagem, ou arriscar minha vida? Ponderei o risco, e desci em direção à câmera, e consegui recuperá-la. Ufa!
Fiquei um tempo em cima tirando fotos, até na companhia de uma pequena ferreirinha-alpina, mas a névoa não deu muita trégua, então desci, faminto e sedento.
Parei no Café 4410, que permite a recarga gratuita de aparelhos eletrônicos – o último lugar onde isso aconteceu. Pedi um hambúrguer vegetariano, fritas e milk shake por 1200 rúpias.
Enquanto aguardava a recarga, reencontrei um grupo de colombianos que havia conhecido no cume. Passei o resto da tarde conversando com eles; foram tão gentis que até me pagaram um lanche. Quem diria que eu comeria torta de maçã num vilarejo remoto desses!
À noite, jantei “thukpa” (450 rúpias) no hotel e relaxei.
7º dia – De Dingboche a Lobuche
Parti rumo a Lobuche. O início é um vale desolado e ventoso, cercado pela montanha que escalei e por outra nevada. Quando chegara o momento de cruzar o Rio Lobuche e começar uma inclinação foda, parei pra um lanche.
Acontece que quando fui trocar o cartão de memória da GoPro, que estava cheio, ele se partiu no meio! Perdi a maioria dos vídeos e fotos que havia feito com ela, pois não havia feito backup. Parece que o que ocorreu na montanha no dia anterior foi uma premonição. Que lástima!
Meio abatido, subi o caminho pedregoso com o fôlego no limite. Em cima, fica o memorial para os alpinistas mortos no Everest. Há dezenas de monumentos que nos relembram o quão perigoso esse ambiente pode se tornar do nada.
Logo depois, já é possível ver um campo coberto de gelo. Mais além, fica o pequeno vilarejo de Lobuche.
Aqui o preço mínimo é 700 rúpias. Consegui no Above the Clouds Lodge um quarto duplo e banheiro com privada, mas nada de pia – nessa altitude já não há encanamento, pois a água congelaria.
Começou a nevar bastante, então parei na padaria mais alta do mundo para fazer outro lanche (doce+chá=550 rúpias). Em seguida, fui ao ar livre fotografar o cenário lindo que se formou com a neve acumulada. Até passarinhos estavam por lá.
Com o tempo, a neve cessou e a névoa dissipou. Com isso, subi um morro para ter uma vista ainda melhor do vilarejo e do Glaciar de Khumbu, do outro lado.
Com o fim do dia, o tempo piorou novamente, então voltei pra hospedagem, onde fiquei esperando um tempão pelo jantar, “dal bhat” (800 rúpias).
Por fim, banho de lenço umedecido e cama.
8º dia – De Lobuche a Gorak Shep e Acampamento Base do Everest
Levantei mais cedo pra não perder a vaga pra noite seguinte em Gorak Shep, o assentamento mais elevado do mundo (5100 metros). O caminho até lá estava com bastante trânsito e não foi tão fácil quanto pensei, pois há subidas e descidas sobre rochas.
Quase na chegada, se vê a geleira de Khumbu, o pico Kala Patthar e o acampamento base do Everest.
Em Gorak Shep, tive ainda mais dificuldade em achar um lugar pra ficar. Procurei em todos locais disponíveis, até que encontrei alguém que aceitasse dividir um quarto no Snow Land Highest Inn (500 rúpias pra cada). Por pouco que eu não fico ao relento!
Deixei minhas coisas e parti para o Acampamento Base do Everest. O caminho é rochoso e passa ao lado da geleira. Entre as atrações, vi um casal da ave terrestre chamada de galo da neve tibetano, além de uma avalanche na montanha do lado oposto da geleira. Parecia um trovão o estrondo.
Peguei ainda um tráfego de iaques carregadores.
Ao chegar, há um marco com bandeiras onde todo mundo comemora. Para a maioria dos aventureiros, esse é o fim ou o retorno para Lukla; para mim, apenas mais uma etapa – que não seria a mais difícil – concluída com sucesso.
Desci até a parte interior, lotada de barracas, onde os alpinistas ficam até um mês se aclimatando. Pisei no gelo e retornei, já que o tempo começava a piorar. Somente pode seguir além quem tem a permissão para escalar o Everest, pois o trecho seguinte (Khumbu Icefall) é um dos mais letais existentes.
Bati um rango violento quando voltei. Fiquei cheio até a hora de dormir, a ponto de me deixar meio mal. Enquanto tentava fazer a digestão, um pessoal da Venezuela e Espanha sentou ao meu lado. Comecei a falar com eles; acabamos jogando cartas até a hora de se retirar – sem banho novamente, já que aqui uma chuveirada custa mil rúpias! Também tive que recarregar o celular por 400 rúpias pra uma hora…
9º dia – De Gorak Shep e Kala Patthar a Dzongla
Mesmo usando o saco de dormir pela primeira vez, não passei a noite tão bem. Às 7 me levantei com leves sintomas de mal de altitude (fadiga, dor de cabeça, tonturas, estômago pesado e distúrbios do sono), mas isso não me deteve. Fui escalar o monte Kala Patthar.
O começo é sobre terra, bem inclinado, cansa bastante. Depois que se contorna essa parte, percebe-se que o cume na verdade é mais distante e alto do que o que parecia ser visto de Gorak Shep.
Continuei lentamente, agora sobre neve e rochas. Uma hora e meia depois, cheguei ao topo do ponto mais alto em minha jornada: 5650 metros!
A vista do topo é sensacional. Ali fica o melhor mirante do imponente Monte Everest, bem como do Glaciar de Khumbu e diversas outras montanhas altas da região.
Havia umas 10 pessoas essa hora no cume. Desci, almocei “momos” e, um pouco depois, segui o caminho de volta. A parte repetida até a bifurcação em Dughla foi meio monótona. De diferente, apenas um grupo que seguia na direção inversa em bicicletas!
Quando atravessei o campo de gelo do acampamento base do Lobuche, não cruzei com mais ninguém. O trecho até Dzongla é meio arriscado, pois segue à beira do precipício na maior parte do tempo.
De vista compensa, pois passa em frente à baita montanha Cholatse e seu lago parcialmente congelado. Também vi umas tantas aves, como a azulada grandala.
Quase na chegada, ultrapassei novamente o grupo de Singapura, cujo líder Saravanan foi até o EBC usando calçado minimalista.
Na terceira tentativa, fiquei hospedado no Himalayan Lodge. Quinhentas rúpias pelo quarto duplo e banheiro com vaso, mas nada de pia. No mesmo lugar, ficaram os singapurenses e o espanhol Claudi, que eu havia conhecido em Gorak Shep. Jantei uma macarronada e passei o resto do tempo conversando com ambos.
A 4.830 metros de altitude, todos foram dormir cedo para a travessia do dia seguinte.
10º dia – De Dzongla e Passo de Cho La a Dragnag
Pelas 5 da madruga os demais já estavam tomando café da manhã, enquanto eu pedi meu omelete e chá pras 6 e meia, o mais cedo que acordei ao longo do trajeto todo.
Na primeira longuíssima subida, já passei um dos grupos. Tanto no dia anterior quanto nesse, alguns conhecidos tiveram que desistir da trilha pelos sintomas do mal de altitude. Um deles precisou até mesmo ser levado de helicóptero de volta.
Estava com receio que tivesse que fazer essa travessia perigosa sozinho, já que a maioria vai cedo, mas acabei encontrando gente suficiente.
Já cansou bastante a primeira elevação, que culminou em uma escalada entre rochas e neve. Um deslize qualquer poderia significar uma lesão que poria fim à aventura. A paisagem, bem como as seguintes, fez valer a pena o esforço.
O passo seguinte foi mais técnico do que cansativo – atravessar uma parede de neve sem proteção alguma contra o abismo que se seguia. Dei graças que Claudi me emprestou cravos para o tênis (crampons) na noite anterior, pois sem eles eu teria chance de despencar nessa etapa ou na seguinte.
Passado o trecho sujeito a avalanches a nada menos que 5.420 metros de altitude, veio a descida nesse meio escorregadio e com risco de queda de rochas. Venci, chegando ao vale seguinte, uma tundra alpina.
Nova subida, seguida de nova descida, mais fáceis dessa vez. Por fim, seguindo o riacho originado numa dessas geleiras, cheguei no pequeno Dragnag, composto apenas de uns 7 alojamentos e nada mais.
Desesperado por um banho, usei o próprio riacho para satisfazer meu desejo. Como eu estava aquecido da longa trilha de 6 horas, a temperatura não pareceu ser um empecilho. Aproveitei para lavar minhas roupas suadas também.
Fiquei hospedado no Khumbi-la Hotel (500 rúpias). Tão básico quanto os demais. Almocei tardiamente “momos” fritos de batata (650 rúpias), botei minha GoPro para carregar (350 rúpias), e passei o resto da tarde entre conversas com os colegas e à toa.
Jantei sopa, li um pouco e capotei. Antes, pedi quanto custava 1 mísero rolo de papel higiênico, já que o meu havia acabado: 550 contos, nem pensar! Peguei os guardanapos da sala de jantar e resolvi o problema…
11º dia – Dragnag a Gokyo e Gokyo Ri
Comi e vazei em direção a Gokyo. O caminho é sobre a morena da maior geleira do Himalaia, a Ngozumpa, com 36 km!
A caminhada dentro da geleira segue em ziguezague pra cima e pra baixo entre pedaços de rochas soltas, manchas de gelo e laguinhos congelados.
Com uma subida final, chega-se a Gokyo. Meu corpo estava tão cansado que levei mais de duas horas para essa travessia.
O povoado de Gokyo é único entre os da rota do trekking, pois fica na beira de um lago semicongelado lindo, cheio de aves e com montanhas nevadas próximas.
Deixei minha mochila na Fitzroy Inn. São 500 rúpias, sendo que o banheiro possui vaso e pia, e o quarto é um pouco melhor.
Comecei então a ascensão da última montanha da rota, a Gokyo Ri, com 5.360 metros. Devido a meu estado precário, fui subindo a passos de tartaruga. Essa montanha é inclinada demais, pois possui 600 metros acima do lago, onde inicia.
A paisagem do meio do caminho é sensacional, mas conforme eu subia o tempo ia fechando, pois já era o começo da tarde. De fato, fui o último a subir.
Uma hora e 45 minutos depois, usando somente a força de vontade, cheguei ao cume. Lá em cima estavam uma argentina e meu colega Claudi. Descemos e fomos comemorar tomando um chá.
Em seguida, jantei “dal bhat” em meu alojamento, com vista para o lago. Não estava me sentindo muito bem do estômago essa hora. Carreguei o celular (300 rúpias), comprei um rolo de papel higiênico (250 rúpias), um pão doce grande (600 rúpias), li um pouco e fui dormir cedo.
12º dia – De Gokyo a Namche Bazaar
Acordei com dor de garganta – também, todo esse tempo respirando ar frio e seco pela boca, além da baixa imunidade por excesso de esforço físico, só poderia acabar assim.
Gastei minha última rúpia no check-out, mas pelo menos ganhei uns chocolates de brinde, que me salvaram de ter que comer mais barras de proteína, o que eu não aguentava mais.
Encarei o dia mais longo de caminhada, pois graças ao dia perdido pelo voo cancelado, tive que percorrer o equivalente a três dias em apenas dois. Em termos de distância, hoje precisaria avançar 24 km até Namche Bazaar. Ainda bem que a maioria seria em declive.
O começo foi passado ao lado dos lagos cênicos de Gokyo. Depois, acompanhando o rio glacial. Passei por alguns vilarejos, descansando, me hidratando e consumindo meus alimentos energéticos a cada cerca de 2 horas, sempre à beira de algum riacho.
Encontrei meu colega Claudi nesse caminho, mas ele ficou em Dole, metade do trajeto que eu percorreria. Além desse povoado, as florestas começaram a ressurgir. Junto delas, uma parte lotada de cachoeiras, onde também vi uma floração de rododendro, a flor símbolo do Nepal.
Já estava cansado, quando em frente a Phortse, uma elevação grande surgiu. Subi a passos lentos. Dali em diante, acelerei o possível no terreno irregular, quase torcendo meu tornozelo algumas vezes.
Quase solitário, cheguei à bifurcação em Sanasa, quando entrei na trilha que já havia percorrido no quarto dia. Exausto, com dor nas costas, cheguei a Namche Bazaar às 16 horas, exatamente 8 horas depois de iniciar.
Saquei dinheiro e fui pra hospedagem onde havia deixado uma pilha de roupas, a Pumori Guesthouse. Morrendo de fome, devorei uma macarronada (550 rúpias) enquanto carregava meus dispositivos.
13º dia – De Namche Bazaar a Lukla
Acordei pior do que no dia anterior, dessa vez à dor de garganta, somou-se um resfriado. Não tive escolha; comi um omelete de queijo e tomate (400 rúpias) e vazei.
O percurso inicial é de pura descida, mas isso não quer dizer que tenha sido rápido, já que há trânsito e o terreno é irregular.
Em sequência, descidas e subidas intermináveis, enquanto atravessava de um lado do rio pro outro nas pontes pênseis. E o corpo reclamando. Mais além, passei pela vila de Phakding. Dali pra frente, foi o maior sofrimento: dor nas costas, nos ombros e nos pés. Eu ia cada vez mais devagar.
O trecho final, majoritariamente de subida, foi um martírio, mas 6 horas e meia depois, cheguei ao portal de Lukla. Finalmente, 150 km de trilhas depois do começo, missão cumprida!
Comemorei e fui pra alguma hospedagem, no caso a Alpine Lodge (500 rúpias). Tomei um banho (250 rúpias) e me joguei na cama, imprestável. Só me levantei para apreciar uma macarronada no jantar, e logo fui dormir o sono dos justos.
Conclusão
Já mais relaxado, degustei uma panqueca com mel (400 rúpias) ao acordar às 7 horas. Em seguida, caminhos os poucos passos até o aeroporto vizinho. Precisei chegar lá às 7 e meia, para torcer que o avião saísse no mesmo dia. Já passava das 11 h, quando finalmente embarquei no último desafio, aquele voo temerário.
Decolagem, OK! Translado, OK! Pouso, OK! Mais uma aventura acabara.
Foram duas semanas ininterruptas vagando com um mochilão nas costas, totalmente por conta própria em ambientes extremos, encarando temperaturas de até -15 °C, montanhas com altitudes de quase 5.650 m, abismos com muitas centenas de metros, paredões de neve e gelo, nevascas, ventanias e chuva, tráfego animal e humano intenso, subidas e descidas intermináveis, dias sem tomar banho ou ter outras tantas comodidades, dores e mal-estares…
Apesar disso tudo, fui imensamente compensado pelos prazeres que tive em presenciar paisagens esplêndidas entre florestas temperadas, boreais e tundras com fauna e flora endêmicas, rios glaciais, geleiras, montanhas nevadas, vilarejos e monastérios graciosos, saborear pratos únicos, conhecer os resistentes Sherpas e tantos outros companheiros de trilha, bem como o fato de superar desafios radicais que levaram o corpo a limites físicos e mentais.
Por fim, permaneci na culturalmente rica Katmandu por alguns dias, antes de continuar a viagem para outros rumos. E assim me despedi do Himalaia, a tempo de escapar das monções, que em menos de um mês chegariam encerrando a tensa temporada do Everest, onde ao menos 12 pessoas perderiam suas vidas para sempre…
Agradecemos ao Matheus pelo super relato! E você, quer compartilhar sua história de viagem com a gente? Envie um e-mail para convidado@melhoresdestinos.com.br